O dia em que uma mulher casada, linda, bem
vestida, heterossexual, católica e da classe média alta me surpreendeu e me
mostrou que fui preconceituosa com ela.
E lá estava
eu no shopping observando gente enquanto tomava um café quase em frente à
escada rolante que descia. Vi descerem duas mulheres de mãos dadas. Elas
pareciam ter entre trinta e cinco e quarenta anos. Tinham olhar leve e
tranquilo. Logo atrás delas descia uma família tradicional: pai, mãe e a
pequena menina de aproximadamente quatro anos. O pai então olha para as mãos
entrelaçadas das duas mulheres à frente e, em seguida, olha para sua
companheira e faz um sinal com a cabeça para que ela também olhasse. Ele
parecia estranhar a imagem. Seu olhar era um misto de espanto e desconforto.
Então as mulheres, sem perceber nada do que acontecia atrás delas, saem da
escada e seguem em direção oposta a que estou, enquanto que a família caminha
na minha direção quando eu ouço a voz da mãe, calma, bem humorada e afetuosa
para o marido:
-O que foi?
É bonito não é? Duas pessoas de mãos dadas! Manifestação de carinho. Você devia
seguir o exemplo delas e andar de mãos dadas comigo também! Desde que tivemos
nossa filha, damos a mão para ela, carregamos bolsas, mochilas, empurramos o
carrinho e por isso nos esquecemos de dar as mãos.
Então ela
sorriu e eles seguiram, também de mãos dadas enquanto a pequena menina
caminhava feliz sem se abalar, nem pelo diálogo dos pais, nem por ter visto as
duas mulheres de mãos dadas.
Não sei
quem são aquelas duas mulheres, elas podem ser um casal – e provavelmente eram
– mas podem ser duas irmãs ou duas amigas. Ou não? O que marcou em mim naquela
cena foi a destreza e a delicadeza com que aquela mãe enxergou naquelas mãos
entrelaçadas apenas um sinal de afeto, de companheirismo, de vínculo, de
caminhada compartilhada. Ela viu ali a mesma beleza que eu um dia vi em um
casal de velhinhos que caminhava pelo meu bairro de mãos dadas. Eles pareciam
ter mais de oitenta anos e é bem provável que caminhem juntos há mais de
sessenta. E cá entre nós, a cena de velhinhos de mãos dadas encanta a todos não
é mesmo? E por que não nos permitirmos nos encantar com todas as mãos dadas,
sem darmos importância a quem são os donos delas? Mãos dadas é sempre uma cena
bonita de se ver.
A
capacidade de olhar para duas pessoas de mãos dadas e enxergar afeto nos ajuda
a entender e respeitar as escolhas de cada um. A decência de duas pessoas que
se amam e que por isso andam de mãos dadas é indiscutível e ali, naquela cena
eu percebi que a pequena menina não via nada além das duas mãos juntas. Ela,
que deve ter mais ou menos um metro e dez de altura tinha os olhos na mesma
altura das mãos das duas mulheres. Não importava de quem eram aquelas mãos, ela
não via nada além do enlace.
Ao
crescermos, nossos olhos passam a enxergar “mais de cima”. Passamos a ver os
rostos, os cabelos, a cor da pele, a roupa, o gênero. Isso nos mostra que nossa
raça é composta de muitas diferenças, e faz parte do jogo aceitá-las. Uma mãe
que, de forma tão amável, mostra ao marido e à filha que o amor de todos deve
ser respeitado e aceito como o deles é, faz a diferença no mundo.
Eles que
ali no shopping para mim eram a imagem clássica da família tradicional de
classe média alta, composta pelo pai provedor, pela esposa e pela filha, prova
que todos somos capazes de conviver em harmonia. Aquela mulher linda e bem
cuidada carregava no pulso uma pulseira com uma imagem católica, me mostrando
que é possível ser cristão sem atirar pedra em casais homoafetivos. Ela que é
heterossexual, que estava vestindo roupas chiques, carregando uma bolsa de
grife nos ombros nos quais caíam os cabelos que mais pareciam os de uma modelo
internacional, olhou com amor e respeito para o casal de mulheres, ambas com os
braços tatuados, roupas simples e cabelos que não passam por tratamento em
salões caros. Ela, cujo marido deveria ser um alto executivo e cuja filha deve
estudar em um dos melhores colégios da capital paulistana, me mostrou que
talvez eu também esteja impregnada por aparências. Tal qual quem olha para o
garoto negro nas ruas e sente medo de ser assaltado, eu ali, não esperava ouvir
tão lindas e astutas palavras vindas de uma mulher com aquela aparência.
Então que a
vida nos brinde cada vez mais com possibilidades de observarmos, de refletirmos
e de definitivamente deixarmos de lado essa tosca mania de discriminar. Que não
generalizemos mais nem os católicos, nem os casais homoafetivos, nem as mulheres
brancas de cabelos dourados, corpo perfeito e adornos caros.
Deixo aqui
meu agradecimento às duas mulheres cujas mãos caminham entrelaçadas e
tranquilas por aí e também àquela mulher que poderia se chamar Gisele. Eu, que
adoro (e tenho) tatuagens e também adoro cuidar dos meus cabelos em salão caro
bato palmas para elas, e que a pequena menina de quatro anos possa seguir
aquele exemplo.
Só se pode
ver com os olhos do coração.
Fonte:
http://www.contioutra.com/author/vanelli-doratioto/ 17/11/2015