segunda-feira, 27 de abril de 2020

VOCÊ NÃO PODE TER SEMPRE O QUE QUER


 A quarentena surpreendeu a todos. Havíamos recém entrado em março, quando 2020 começaria pra valer, mas em vez de dar início ao cumprimento das resoluções de fim de ano, fomos condenados à prisão domiciliar, mesmo não tendo cometido crime algum. Paciência: ser livre se tornou um delito. Parece injusto, mas chegou a hora de entender que não podemos ter sempre o que queremos. 
 Gostaríamos muito de rever os amigos e parentes, fazer a viagem planejada, torcer pelo nosso time, ir ao pilates, ao cabeleireiro, tomar uma caipirinha com o crush, comparecer às formaturas e casamentos. Gostaríamos de ver as lojas abertas, o comércio aquecido, os índices da bolsa subindo, o dólar baixando.
 Gostaríamos de acreditar que todos os líderes do mundo estão errados e só o nosso presidente está certo. Gostaríamos de ter alguém lúcido e responsável no comando do país. Mas, infelizmente, you can´t always get what you want. Não por acaso, foi essa a música escolhida pelos Rolling Stones em sua participação no comovente One World/Together at home, evento transmitido ao vivo em 18 de abril, onde diversos artistas, personalidades e profissionais da saúde uniram-se online, cada um em sua casa, para lembrar que somos todos absolutamente iguais diante de uma ameaça, e que o distanciamento social é a saída, mesmo  que não seja o que a gente quer.   
 Seu desejo é uma ordem? Não mesmo. Frase cancelada, como canceladas foram as peças de teatro, os jogos de futebol, as liquidações, o happy hour depois do expediente – e o próprio expediente. Aposentadoria antes da hora, por tempo indefinido. Qual será o legado, o que aprenderemos desta experiência? 
 Que consumir por consumir é uma doença também. Que o céu está mais azul, a vegetação mais verde e o ar mais puro: não somos tão imprescindíveis, a natureza agradece nossa reclusão. Que há muitas maneiras de se comemorar um aniversário, mesmo sozinho em casa: vizinhos cantam em janelas próximas, amigos deixam flores na portaria do prédio, organiza-se uma reunião por aplicativo. Emoção genuína, festa inimitável. E pensar que há quem gaste uma fortuna com decoração de ambiente, DJ da moda e champanhe francês para 500 convidados, e ainda assim não consegue se sentir amado.       
 Já tivemos, poucos anos atrás, uma greve de caminhoneiros que serviu de ensaio do apocalipse. Pois já não é mais ensaio, é apocalipse now. Não desperdicemos a chance de amadurecer, simplificar, mudar de atitude. De valorizar o coletivo em detrimento do individual. De praticar um novo método de convívio: uns pelos outros, sempre, e não só na hora do aperto. De fazer deste imenso país uma nação mais homogênea, em prol de uma existência menos metida a besta.
(Martha Medeiros)

domingo, 26 de abril de 2020

ENSAIO: FALÊNCIA DO TEMPO



Pandemia provoca a ilusão de um futuro desfeito.

Este é um tempo de falências. Por toda parte nos chegam notícias de uma falência múltipla: de órgãos corporais, de sistemas de saúde, de famílias, de empresas, da razão, da presidência. E de todas as falências que compõem este tempo, talvez a mais discreta, embora manifestada em tantos detalhes e sentida por muita gente, seja a falência do próprio tempo.
Ouço dos amigos, dos parentes, ouço dos desconhecidos que me alcançam em vídeos cômicos ou melancólicos: isolado em quarentena, o tempo estancou e se recusa a exercer o seu efeito. As horas se repetem, indistinguíveis, indiferentes, e revelam sua absoluta inutilidade, dispostas apenas a expor o cortejo das nossas tragédias. Às notícias interminavelmente tristes, somam-se a impotência, o temor, o tédio, o desalento, e assim vão produzindo algo como um inchaço do presente - que ofusca até mesmo o passado mais próximo, e parece bloquear a vista do futuro inteiro.
Não será a primeira vez que se revela a maleabilidade do tempo, sua subjetividade, sua submissão às leis da incerteza. Sobre a relatividade do tempo, aliás, a tão atacada ciência já cuidou de oferecer fórmulas convincentes. Em situações críticas, porém, não é absurdo dizer que a imprecisão se agrava, que relógios e calendários se mostram ainda mais descartáveis, arbitrários, infames.
O alemão W. G. Sebald devotou quase toda sua obra literária, das mais potentes da nossa época, a compreender as nuances do trauma histórico. É na boca de Austerlitz, seu personagem mais emblemático, que ele situa palavras sobre o tempo, que "não avança de forma constante, mas se move em redemoinhos", que é marcado por "estagnações e irrupções", que "evolui sabe-se lá em que direção". Habitado pelo trauma desde a infância, Austerlitz por vezes se deixa tomar pela esperança de que o tempo não passe, para que nada tenha se passado, para que não seja verdade o que conta a História.
Imersos como estamos no âmago de um possível trauma, coletivo e disperso, não é fácil decifrar o sentido da paralisia temporal que nos toma. Não é o passado o que tentamos negar agora, pelo contrário: a maioria de nós parece contemplar até com certa nostalgia os meses, as semanas, os dias que antecederam este presente atípico. Eram dias de liberdade e inocência: saíamos às ruas, fazíamos festas, abraçávamos os amigos, desconhecíamos a medida da contenção que logo tomaria conta de tantas vidas. Vivemos agora uma ausência desse passado, como se ele tomasse distância e já não nos pertencesse.
"Os mortos estão fora do tempo, os moribundos e todos os doentes nos leitos das suas casas ou dos hospitais, e não são só eles, pois um tanto de infelicidade pessoal já basta para nos cortar de todo o passado e de todo o futuro", descreve Austerlitz. Nós, em nosso tempo, percebemos que basta a iminência da dor e da infelicidade, ou basta que adquira um caráter amplo e social, para que toda a ordem temporal colapse.
O futuro é o que mais estremece, o que mais gera desconfiança. Por toda parte se propaga o discurso de que o mundo mudou para sempre e jamais seremos os mesmos. Em tal discurso, o futuro é estreito, não se estende além dos próximos meses, do próximo ano, desconsidera a possibilidade dos anos plurais, das décadas. Nessa ausência de horizonte, a paralisia do tempo se torna paralisia geral, se torna pandêmica. Tantos de nós vamos cancelando projetos, e nos parecem insensatos os trabalhos que faríamos, as festas que daríamos, inúteis as aulas que poderíamos cursar, fúteis os livros que escreveríamos.
Contra toda a paralisia, entre as muitas ações que o presente nos exige, talvez não seja pouco importante a luta contra a falência do tempo. Ou melhor, a luta contra a ilusão de que já não há tempo, de que o passado não nos pertence, de que o futuro caducou ou inexiste. Não deixemos que a obscuridade do presente nos cegue: é amplo o horizonte do tempo e é em direção a ele que avançamos. Todo projeto, todo trabalho, todo livro encontrarão ainda o seu momento.
Pois o tempo, é Borges quem diz, não é mais que a sucessão, a incontável cadeia de acontecimentos. Enquanto todos dormem, ou batem panelas, ou ouvem inertes os estúpidos pronunciamentos, o silencioso rio do tempo está fluindo nas ruas, nas praças, nos campos, no espaço, está fluindo entre os astros.  Não há de demorar o dia em que despertaremos para ver que o presente virou passado, e que um futuro inteiro nos aguarda.
(Julián Fuks)