terça-feira, 11 de agosto de 2020

“VIVER É UM RASGAR-SE E REMENDAR-SE”


   Meus joelhos trazem marcas de uma infância bem vivida. Há o tombo da bicicleta na ladeira da igreja, o escorregão no barranco atrás da casa da vó, a queda brusca na travessia da rua de paralelepípedos do trabalho do pai.

Olho para minhas cicatrizes e me lembro da dor que ficou lá atrás, junto com as histórias que desconstruí e voltei a escrever com uma caligrafia mais amadurecida.

Tenho descoberto que, assim como Guimarães Rosa poetizou, “Viver é um rasgar-se e remendar-se”. 

Talvez ele já soubesse que a vida é feita de desconstruções e reconstruções, e que, ainda que nossas bainhas desfeitas nos causem tanta dor, outros arranjos serão possíveis no seu tempo, mostrando que jamais seremos os mesmos, mas isso também significa crescer.

Estar “remendado” pela vida não nos torna mais tristes ou piores. Ao contrário, estar remendado quer dizer que evoluímos, que conseguimos lidar com nossos abismos e nos reerguemos, que ralamos a alma no chão de nossas aflições e nos tornamos mais fortes e corajosos.

Algumas cicatrizes são imperceptíveis aos olhos, mas nem por isso doem menos. Porém, também trazem o tempo do amadurecimento, tempo em que a inconstância e a agitação da imaturidade dão lugar ao silêncio e à serenidade da calmaria.

Viver é dar novo sentido ao que vamos nos tornando com o passar do tempo. Pois o que somos hoje não é o mesmo que ontem, e nem será o mesmo que amanhã. Nos descosturamos e remendamos incessantemente, fazendo novas escolhas, renunciando ao que não serve mais, viajando para um lugar diferente, assistindo a algum filme ou documentário interessante, lendo algum texto num livro antigo ou na internet, batendo papo com aquele amigo inteligente, experimentando um novo sabor, ouvindo uma boa música.

Crescemos, nos despedimos, nos vestimos e nos despimos. É preciso ser feliz com aquilo que nos pertence, com a colcha de retalhos que nos tornamos, com as pontas descosturadas e as novas emendas que compõem nosso tecido.

A gente muda e nosso mundo se transforma. É preciso reaprender a lidar com o que nos tornamos depois que somos descosturados. É preciso encontrar sentido nas novas realidades que agora fazem parte do nosso mundo e de nós mesmos. Aprender a conviver com a falta, com o silêncio, mas também com a chegada de novas alegrias e surpresas.

Ainda me lembro dos tombos memoráveis da minha infância. Foram eles que me ensinaram a me resguardar do perigo e andar mais cuidadosa pela vida. Me rasgaram a pele, sangraram e causaram dor. Hoje são só sinais de um tempo bom que não existe mais. Cresci, acumulei conhecimento e alguma serenidade, e hoje tento passar ao meu filho um vestígio da minha experiência. Porém, sei que antes ele precisará rasgar-se e descosturar-se para então reconhecer seu espaço e seu caminho.

Ninguém pode nos poupar do que está reservado para nós. As pedras, desafios e alegrias de nosso caminho são só nossos, e os remendos adquiridos no decorrer do tempo, também…

(Fabíola Simões)

sábado, 8 de agosto de 2020

PEDRO CASALDÁLIGA NOS DEIXA. PEDRO PERMANECE.

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"O coração de Pedro Casaldáliga, catalão do mundo, deixou de bater esta manhã. Católico ecumênico, devoto de todas as missões de Justiça e Liberdade, bispo emérito de São Félix do Araguaia (MT), Pedro fez sua travessia.
O coração de Pedro, pedra e flor, poeta e profeta, "combatente derrotado de causas invencíveis" - como ele gostava de dizer -, continuará pulsando, a inspirar a caminhada dos que virão depois dele. E depois de nós, seus camaradas de fé, sonhos e lutas.
Nas vezes em que encontrei com Pedro - não foram muitas, infelizmente - eu brincava: "você devia ser nosso papa!". Ele respondia no mesmo tom, com seu humor bom: "por isso mesmo, por gente como você querer, nunca vou ser; além do mais, não tenho vocação para príncipe".
Pedro via em Francisco uma benção, uma tentativa de retorno ao cristianismo das catacumbas, dos primórdios. Para Pedro, o coerente, ser cristão era ser despojado: "nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar!".
É simbólico de sua solidariedade visceral com os oprimidos que o corpo de Pedro tenha se apagado no dia em que, no Brasil, chegamos às 100 mil trágicas mortes pela Covid. Pedro está ali, luz nas trevas, confortando os aflitos, denunciando a insensibilidade dos podres poderes - como fez durante toda sua vida.
Pedro bispo do anel de tucum, do báculo que era um cajado, do chapéu de palha como mitra. Pedro bispo dos comuns, do calcinado e imenso chão brasileiro, das águas profundas do Araguaia.
Assim pregou, assim viveu. Por isso a morte, quando chegou há pouco, querendo algo de seu, nada encontrou para tomar. Assim a morte foi vencida por Pedro, pedra angular.
Muito mais densas do que as nossas, as palavras vividas de Pedro continuarão a nos orientar e animar - mistérios da fé:
"Para descansar/ eu quero só esta cruz de pau/ como chuva e sol/ Estes sete palmos/ e a Ressurreição".
Pedro pediu para ser sepultado no cemitério dos Karajás, na sua terra de adoção, à beira do rio e à sombra de um pé de pequi, entre um peão e uma prostituta. Ele sabia que esses nos precederão no Reino dos Céus (Mt, 21, 31).
Pedro, amigo fiel do Jesus dos pobres, fragmento de Deus na terra, está plenificado no Corpo Místico, Cósmico e Eterno do Todo Poderoso Amor, a quem ele tanto serviu.
Glória, gracias!"
(Chico Alencar)