A gente não
pode se sentir sensual demais. É inadequado.
A gente não
pode se vestir de qualquer jeito, ficar sem maquiagem numa festa, nem ser tão
provocante ou tão recatada.
A gente não
pode ficar se admirando no espelho. É narcisista.
Se a gente
se arruma, é pros outros. Não é porque simplesmente a gente quer se ver bonita.
Se a gente
ri além da conta, chama muita atenção. Não pega bem.
Se a gente
bebe mais que um homem, não é mulher pra levar a sério.
Se a gente
gosta de funk e rebola até o chão (principalmente depois de beber muito), não é
pra casar.
Se a gente
gosta muito de sexo, não é confiável.
Se a gente
não gosta tanto de sexo, está dando motivo pro cara arrumar outra na rua.
Se a gente
tem filho e o cara some, a gente é irresponsável por não tomar remédio.
Se a gente
não quer filho, a gente é egoísta.
Se a gente
não casa é porque tá fazendo algo errado.
Se a gente
casa jovem demais tá perdendo a chance de aproveitar a vida de solteira.
Se a gente
casa velha demais, tem que ouvir piadinhas sem fim de todos os familiares e
amigos.
Se a gente
namora um homem mais novo, o cara é interesseiro ou imaturo demais.
Se a gente
arruma um coroa, a gente é interesseira.
Se a gente
engorda, é porque preguiçosa. Se tá magra demais é porque tá doente ou
neurótica.
Se a gente
para de alisar o cabelo é só porque tá na moda.
Se a gente
continua alisando, a gente não se aceita como a gente é.
E, como se
não bastasse, se a gente reclama da desigualdade de gênero ou não sustenta
piadinhas machistas babacas, a gente é feminazi.
Quando a
gente nasce mulher, é difícil saber o que parece adequado e o que poupa
comentários. Porque não existe um caminho que isente a gente disso.
Qualquer
escolha que a gente faça, causa barulho e abre espaços para inúmeras opiniões
não solicitadas.
A gente
menstrua, sofre estupro e abuso sexual o tempo todo, tem filhos, tira quase
todos os pelos do corpo, faz lipo porque a gente é ensinada a ter problemas com
o corpo... A gente dá vida às pessoas que nascem no mundo e a gente não
consegue dar uma vida decente pra gente.
A vida que
a gente gostaria, um dia sem maquiagem, uma semana comendo sorvete com brownie,
uma noite enchendo a cara com as amigas, todos os dias da vida sem poupar os
homens de verdades que a gente guarda.
A gente
finge que é livre, mas deixa de sair porque tem que deixar janta pronta pro
marido.
A gente se
obriga, a gente apanha, a gente se cansa, a gente não se ama o suficiente, a
gente morre. Um pouco todos os dias.
Num aborto
clandestino, numa saia curta, numa briga de boate, numa esquina vendendo o
próprio corpo, num copo de cerveja com boa noite cinderela, numa risada mais
alta que deu a entender algo que não era, numa traição, numa cirurgia pra
consertar o bico do peito que é diferente do outro.
A gente morre
aos poucos. E vai continuar morrendo se a gente não se salvar, se a gente não
se abraçar, se a gente não tiver simpatia por quem é como a gente.
Não é pra
ser mulher contra homem. É pra ser todo mundo pela mulher.
A gente tá
sangrando e se ninguém estancar o sangue, a gente pode não resistir.
A gente
precisa pegar as gases, os esparadrapos, o que tiver de útil pra dividir. E
cada uma poder cobrir aos poucos o pedaço da ferida. Mas cobrir de um jeito que
não sangre mais. Não dá mais pra fingir que curou. Tem que curar de verdade,
cicatrizar e não voltar. Nunca mais.
A gente
pode pensar em ser feliz. Não tá errado. A gente tem opinião, a gente tem
desejo, a gente ama, a gente erra. A gente sabe. Ah, a gente sempre sabe. E
sente. E se arrasta. Mas a gente quer viver. A gente não quer atenção, a gente
só quer paz.
A gente
quer ser mulher. A gente quer SER.
Deixa a
gente!
(Clarissa
Lima)